O Caráter Esotérico dos Evangelhos
O Caráter Esotérico dos Evangelhos*
Helena P. Blavatsky
“Diz-nos, quando acontecerão essas coisas e qual é o sinal da tua presença(1) e da completude do tempo?” (Mt 24:3), perguntaram os Discípulos do Mestre, no Monte das Oliveiras.
A resposta de Cristo é profética e muito sugestiva. É na verdade um aviso:
E Jesus, respondendo, disse-lhes: “Olhai que ninguém vos desvie. Pois muitos virão em meu nome, dizendo ‘eu sou o Cristo’; e desviarão muitas pessoas. Ouvireis falar de guerras e de rumores de guerras. Olhai para que não fiqueis perturbados. É forçoso que aconteça, mas ainda não é o fim. Levantar-se-á povo contra povo e reino contra reino e haverá fomes e terremotos de lugar para lugar. Todas essas coisas serão o princípio das dores. Então entregar-vos-ão à opressão e matar-vos-ão; e sereis odiados por todos os povos por causa do meu nome. E então muitos ficarão escandalizados e trair-se-ão e odiar-se-ão uns aos outros. E muitos falsos profetas se levantarão e desviarão muitos. E por causa da multiplicação da iniquidade, esfriar-se-á o amor de muitos. Quem permanecer até o fim, esse se salvará. E essa boa-nova do reino será anunciada em todo o mundo como testemunho dirigido a todos os povos; e então virá o fim. Quando virdes a abominação da desolação, dita através de Daniel, o profeta, de pé em lugar santo — quem estiver lendo que entenda! —, então os habitantes da Judeia que fujam para as montanhas. Quem estiver no telhado que não desça para levar as coisas de sua casa, e quem estiver no campo não volte para pegar na sua capa. Ai das grávidas e das que estiverem a amamentar naqueles dias! Rezai para que a vossa fuga não aconteça no inverno ou em dia de sábado. Pois será grande a angústia, tal como nunca houve desde o início do mundo até agora, nem jamais haverá. E se não fossem encurtados aqueles dias, não se salvaria toda carne. Por causa dos escolhidos esses dias serão encurtados. Então se alguém vos disser ‘eis aqui o Cristo’ ou ‘acolá’, não acrediteis. Pois serão levantados falsos Cristos e falsos profetas e darão sinais grandes e prodígios com o intuito de desviar, se possível, também os escolhidos. Eis que vos predisse tudo. Pois se vos disserem ‘eis que ele está no deserto’, não saiais; ‘eis que está no interior da casa’, não acrediteis. Tal como o relâmpago sai do oriente e brilha até o ocidente, assim será a vinda do Filho do Homem...
Duas coisas se tornam evidentes para todos nas passagens acima: a) “a vinda do Cristo” significa a presença da Força Crística num mundo regenerado, e de forma alguma uma efetiva vinda em corpo de Cristo Jesus; b) este Cristo não é para ser procurado no deserto nem “em câmaras secretas”, nem no santuário de algum templo ou igreja construída por homens; pois Cristo – o verdadeiro e esotérico Salvador – não é um homem, mas a Essência Divina em todo ser humano. Aquele que se esforça para ressuscitar o Espírito crucificado nele pelas suas próprias paixões terrestres, e as enterrou fundo na “sepultura” de sua carne pecaminosa; aquele que tem a força de rolar para fora da porta de seu santuário interior a pedra da matéria, ele tem o Cristo ressuscitado dentro dele. O “Filho do Homem” não é filho da carne, mas, em verdade, do Espírito, o filho dos atos do próprio homem, e o fruto do seu próprio labor espiritual.
Por outro lado, em tempo algum, desde a Era Cristã, os sinais precursores descritos em Mateus se aplicam de forma tão expressiva e contundente como nestes tempos de agora. Quando tem se levantado nação contra nação mais que nestes tempos? Quando tem a fome – outro nome para os pobres desamparados e a multidão faminta de assalariados – sido mais cruel, terremotos mais frequentes, ou de maiores amplitudes, como nos últimos anos? Os místicos que compreendem o significado oculto da universal espera por Avatares, Messias e Cristos, sabem que não é “o fim do mundo”, mas “a consumação de uma era”, isto é, o fechamento de um ciclo, que agora está rapidamente se aproximando.
Muitas e muitas vezes, o aviso sobre os “falsos cristos” e profetas que deverão desviar muitas pessoas do caminho, tem sido interpretado por caridosos cristãos, adoradores da letra morta das suas escrituras, como destinado aos místicos em geral. No entanto, parece muito evidente que as palavras no Evangelho de Mateus e em outros dificilmente podem ser a eles destinadas. Pois estes nunca foram vistos dizendo que Cristo está “aqui” ou “acolá”, no deserto ou na cidade, e muito menos nas “câmaras secretas” atrás do altar de alguma moderna igreja. Seja pagão ou cristão de nascimento, eles se recusam a materializar, e assim degradar, aquilo que é o maior e mais puro ideal – o símbolo dos símbolos – o imortal Espírito Divino no homem, quer seja chamado Horus, Krishna, Buda ou Cristo.
A adoração à letra morta na Bíblia é mais uma forma de idolatria, nada mais. No entanto, quando lida esotericamente, ela contém, se não toda a verdade, porém “nada mais que a verdade”, ainda que de formas alegóricas.
A “Força Crística”, o Consciente e Glorificado Espírito da Verdade, sendo Universal e Eterno, o Verdadeiro Cristo, não pode ser monopolizado por qualquer pessoa (...). O Espírito de Cristo não pode ficar ou ser confinado em nenhum credo ou seita, só porque aquela seita escolheu se exaltar acima das outras religiões ou seitas.
Assim como as escrituras das grandes religiões mundiais, a Bíblia não pode ser excluída daquela classe de escritos alegóricos e simbólicos que vêm sendo, desde eras pré-históricas, o receptáculo dos ensinamentos ocultos dos Mistérios da Iniciação, de forma mais ou menos velada. Os autores primitivos dos Evangelhos sabiam certamente a verdade, e toda a verdade; mas seus sucessores tinham, de certeza, apenas dogmas e formalidades, que levam ao coração apenas o poder hierárquico, e não a essência dos ensinamentos do Cristo.
Entretanto, a Verdade não se permitiu permanecer sem testemunha. Existem, além de grandes iniciados à simbologia das escrituras, um número de silenciosos estudantes dos mistérios do esoterismo arcaico, de acadêmicos proficientes em hebraico e outras línguas mortas(2), que devotaram suas vidas para decifrar os enigmas da Esfinge das religiões mundiais. E estes estudantes, muito embora nenhum deles ainda dominaram todas as “sete chaves” que desvendam o grande problema, têm descoberto o bastante para serem capazes de dizer: existiu um idioma misterioso universal, no qual todas as Escrituras Mundiais foram escritas, desde os Vedas ao “Apocalipse”, do “Livros dos Mortos” ao Ato dos Apóstolos. Se, de fato, a Bíblia é forçada a ser aceita mundialmente pelo seu significado meramente literal, em face das modernas descobertas feitas por Orientalistas e dos esforços de estudantes independentes e cabalistas, é fácil profetizar que mesmo as atuais novas gerações da Europa e América vão repudiá-la, assim como todos os materialistas e racionalistas têm feito. Pois, quanto mais se estuda textos religiosos antigos, mais se percebe que o alicerce do Novo Testamento é o mesmo alicerce dos Vedas, da teogonia egípcia e das alegorias de Zoroastro. As penitências de sangue – pactos de sangue, transfusões de sangue dos deuses para os homens, ou entre os homens, como sacrifícios para seus deuses – é a nota principal de toda cosmogonia e teogonia; alma, vida e sangue foram palavras sinônimas em todos os idiomas, proeminentemente entre os judeus; e aquela doação de sangue era, na verdade, doação de vida. Muitas lendas entre as nações estrangeiras atribui a alma e a consciência da humanidade recém-criada, ao sangue dos deuses criadores.
No entanto, o significado místico da ordenação, “Em verdade, em verdade, vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós” [Jo 6:53], jamais poderá ser entendido ou apreciado em seu verdadeiro valor oculto, exceto por aqueles que possuem alguma das sete chaves. Estas palavras ditas por Jesus de Nazaré são palavras de um Iniciado.
A primeira chave que é preciso usar para desvendar os segredos ocultos que envolvem o nome místico do Cristo, é a chave que destrava a porta dos mistérios ancestrais dos primitivos Arianos e Egípcios. A Ciência Espiritual, ofuscada pelo sistema oficial cristão, é universal; é o eco da religião-sabedoria universal, que uma vez fora a herança de toda a espécie humana; e, portanto, pode-se dizer verdadeiramente que, em seu aspecto metafísico mais puro, o Espírito de Cristo (o Verbo Divino) esteve presente na humanidade desde o seu começo.
Podemos aprender, no Evangelho segundo Lucas, que os “dignos” foram aqueles iniciados nos mistérios da Ciência Divina, e que foram “considerados merecedores” de alcançar a “ressurreição dos mortos” nesta vida… “aqueles que sabiam que não podiam mais morrer, sendo iguais aos anjos como filhos de Deus e filhos da Ressurreição”. Em outras palavras, eles foram os grandes adeptos de quaisquer religiões; e estas palavras se aplicam a todos aqueles que, sem serem Iniciados, lutam e vencem, através de esforços pessoais para viver a vida e alcançar a natural e consequente iluminação espiritual, ao unirem suas personalidades (o “Filho”) com suas Centelhas de Espírito Divino (o “Pai), o Deus interior de cada um. Esta “ressurreição” jamais poderá ser monopolizada pelos cristãos, pois é o direito de nascença espiritual de todo ser humano dotado de alma e espírito, qualquer que seja sua religião. Tal indivíduo é um homem-Cristo. Por outro lado, aqueles que escolhem ignorar sua própria Força Crística, deverão morrer pagãos não regenerados – não obstante acreditando em batismos, sacramentos, rezas e dogmas.
Aquele que encontra a Força Crística dentro de si, torna-se um seguidor e um Apóstolo de Cristo, ainda que nunca tenha sido batizado, ou sequer tenha encontrado um cristão na vida, ou ainda menos que se considere um.
Notas:
* Texto reeditado do original publicado em novembro de 1887.
(1) A palavra “parousia”, no grego bíblico, significa “presença”, mas também é comumente usada com o sentido de “vinda” ou “chegada”. [n. do editor]
(2) Hoje em dia o hebraico não é mais considerado uma língua morta. [n. do editor]