Prestes João

Ben Ramá

dez/23

MITOS, CONTOS & LENDAS

Carta de Preste João

(Idade Média, séc. XII)

Em meio às brumas do tempo, emerge uma lenda envolta em mistérios e encantamentos, que há séculos intriga a imaginação dos aventureiros e semeia sementes de curiosidade entre os buscadores do esotérico. Trata-se da fascinante saga do lendário Reinado de Preste João, um reino mítico que se perde entre as páginas da história e as fronteiras da realidade.

Nas narrativas que permeiam essa lenda, Preste João é descrito como um monarca extraordinário, cujo reino resplandece com esplendor e maravilhas inigualáveis. Sua corte é adornada por riquezas inimagináveis, enquanto o próprio soberano é envolto em uma aura de sabedoria e magia. Contudo, a localização exata desse reino permanece oculta, desafiando os mais destemidos exploradores e despertando a crença de que Preste João guarda segredos que transcendem a compreensão humana.

A carta*:

Preste João, rei dos reis, senhores dos senhores, pela potência e virtude de Deus e poder de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Manuel, regedor de Roma, envia saudações e alegria para alcançar maiores coisas. Considerarei bom enviar-te também pelo nosso embaixador alguns presentes, pois queremos e ansiamos por saber se professas conosco a verdadeira fé e se crês sem falha em Nosso Senhor Jesus Cristo. Ora, sabendo nós que tu és um homem, esses teus gregozitos pensam que és um Deus, quando nós sabemos que estás sujeito à corrupção humana.

Ora, se quiseres deslocar-te ao nosso reino, nós te atribuiremos uma casa maior e mais esplêndida do que a nossa e, nela, poderás usufruir da nossa abundância; se desejares regressar, regressarás cumulado de todas aquelas coisas que em nosso reino temos em abundância. Lembra-te dos teus novíssimos e livrar-te-ás para sempre do pecado. Mas se queres conhecer a grandeza e excelência da nossa alteza e por que terras se estende o nosso poderio, entende e crê sem falha que eu, Preste João, sou o Senhor dos Senhores e me avantajo a todos os reis da terra inteira em todas as abundâncias que existem debaixo do céu, em força e em poder.

Setenta e dois reis são nossos tributários. Somos um cristão devotado e, onde quer que haja cristãos pobres, que o poder da Nossa Clemência governa, defendemo-los e sustentamo-los com as nossas esmolas. Desejamos ardentemente visitar o sepulcro do Senhor com um grande exército, pois convém à glória da Nossa Majestade humilhar e desbaratar os inimigos da cruz de Cristo e exaltar o Seu bendito nome.

A Nossa Magnificência domina as três Índias; o nosso território começa na Índia posterior, na qual repousa o corpo do apóstolo São Tomé, estende-se pelo deserto em direção ao berço do sol, e desce até a deserta Babilônia, contígua à torre de Babel. Setenta e duas províncias nos prestam vassalagem, das quais poucas são de cristãos e algumas têm reis próprios, os quais, todos eles, são nossos tributários. Na nossa terra nascem e crescem elefantes, dromedários, camelos, hipopótamos, crocodilos, metagalináceos, cameteternos, tinsiretas, panteras, onagros, leões brancos e ruivos, ursos brancos, melros brancos, cigarras mudas, grifos, tigres, lâmias, hienas, porcos selvagens grandes como búfalos e com dentes do comprimento de um côvado, grandes cães selvagens do tamanho de cavalos.

A nossa terra abunda em mel e abunda em leite. Em nenhuma terra nossa os venenos são nocivos nem coaxa a rã palradora, não existe o escorpião nem a cobra serpenteia na erva. Os animais venenosos não podem habitar neste lugar nem aqui causar qualquer dano. Através de uma província nossa onde vivem os pagãos, corre um rio chamado Idono. Esse rio, saindo do Paraíso, estende o seu curso por toda aquela província em diversos meandros, e aí são encontradas pedras naturais, esmeraldas, safiras, carbúnculos, topázios, crisólitos, ônices, berilos, ametistas, sardas e muitas pedras preciosas. Aí nasce uma erva chamada assídio, cuja raiz, se alguém a trouxer consigo, afugenta o espírito imundo e obriga-o a dizer quem é, de onde é e que nome tem.

Por isso, naquela terra, os espíritos imundos não ousam se apoderar de ninguém. Ora, este bosque fica situado no sopé do monte Olimpo, de onde nasce uma clara fonte que conserva em si o sabor de todas as especiarias. De fato, seu sabor varia a cada hora do dia e da noite e espalha-se a uma distância de três dias, não longe do Paraíso de onde Adão foi expulso. Se alguém beber em jejum três vezes dessa fonte, a partir desse dia nunca mais sofrerá de qualquer doença e será sempre, enquanto viver, como se tivesse trinta e dois anos de idade. Aí há umas pequenas pedras a que chamam “midriosos” que frequentemente as águias costumam transportar para as nossas terras, com as quais rejuvenescem e recuperam a vista. Se alguém usar uma dessas pedras no dedo, nunca lhe fará a vista e, está ameaçado disso, a recobrará e quanto mais a contemplar, mais se lhe aguçará a vista. Consagrada por uma benção legítima, torna o homem invisível, afugenta os ódios, proporciona a concórdia e afasta a inveja.

Contíguo ao deserto, entre os montes inabitáveis, corre sob a terra um ribeiro para o qual não se encontra passagem, a não ser por um acaso. Com efeito, a terra abre-se de quando em quando e, se alguém nesse momento atravessa, pode entrar e sair a grande pressa, não vá, por acaso, a terra fechar-se. E o que se apanha da areia são pedras preciosas e gemas preciosas, porque a areia e o saibro não são aí senão pedras preciosas e gemas preciosas. E esse ribeiro corre para outro rio de maior grandeza no qual os homens da nossa terra entram e daí trazem a maior abundância de pedras preciosas; não ousam, porém, vendê-las sem primeiro as mostrarem à Nossa Excelência. E se nós quisermos ficar com elas para o nosso tesouro ou para uso do nosso poderio, recebemo-las por metade do preço; se não, eles podem livremente vendê-las. Nessa terra são também criados meninos na água, de tal modo que para que possam achar as pedras, por vezes vivem três ou quatro meses de baixo de água.

Para lá do rio das pedras, porém, estão dez tribos de Judeus que, ainda que tenham reis fictícios, são, todavia, nossos vassalos e tributários da nossa excelência.

Em outra província, junto da zona tórrida, existem uns vermes que na nossa língua se chamam salamandras. Esses vermes não podem viver senão no fogo e produzem uma película em volta de si, tal como os outros vermes que fabricam a seda. Esta película é cuidadosamente trabalhada pelas damas do nosso palácio e dela obtemos vestes e panos para todos os usos da Nossa Excelência. Esses panos não são lavados senão no fogo fortemente aceso.

Além das outras maravilhas da nossa terra, as quais parecem completamente incríveis aos homens, possuímos cinco pedras incrivelmente poderosas, do tamanho de avelãs. A natureza da primeira é tal, que, tanto no Inverno como no Verão, se a colocamos ao relento, ela irradia um frio tão intenso em dez milhas ao redor de si que, na verdade, nenhum homem nem nenhum animal o pode suportar pelo espaço de meio dia, que imediatamente não se resfrie e morra. A natureza da Segunda pedra é tal, que, igualmente, tanto no Inverno como no Verão, se colocamos ao sol, produz um tão grande e ardentíssimo calor, que nenhuma criatura vivente o pode suportar pelo espaço de meio dia, que, tal como a estopa arde no meio do fogo ardente, não se queime completamente e fique reduzida a cinzas.

Entre nós ninguém mente nem ninguém pode mentir. E se alguém começasse a mentir imediatamente morreria e como morto entre nós seria considerado, nem menção deles seria feita perante nós, nem depois alcançaria de nós qualquer honra. Todos respeitamos a verdade e amamo-nos uns aos outros. Não existem adúlteros entre nós. Nenhum vício grassa entre nós.

Temos domínios sobre as Amazonas e também sobre os Brâmanes. As Amazonas são mulheres que têm uma rainha, sendo a habitação delas uma ilha que se estende por todas as partes na extensão de mil milhas, e é rodeada por todos os lados por um rio que não tem princípio nem fim, como um anel sem gema. A largura desse rio é de mil quinhentos e sessenta e cinco estádios. Nesse rio, porém, existem peixes saborosíssimos para comer [e facílimos de apanhar]. Há também aí outros peixes, grandes e destros, com quatro pés dispostos de muito boa maneira, pescoço normalmente longo, cabeça pequena, orelhas agudas e caudas dispostas de modo muito conveniente.

Os Brâmanes são muitos e homens simples que levam uma vida pura. Não querem ter mais haveres do que a necessidade da natureza exige. Suportam e aguentam tudo. Dizem ser supérfluo tudo o que não é necessário. São santos mesmo quando ainda em vida. Com cuja santidade e justiça toda a cristandade é em toda a parte sustentada, como veremos, e, para que não seja vencida pelo diabo, é defendida pelas suas orações. Eles estão a serviço de Nossa Majestade somente com suas orações e nós não desejamos deles ter mais nada.

Contígua ao palácio temos uma capela de vidro, não fabricada por mão humana, mais maravilhosa do que todas as maravilhas, a qual, nada existindo nesse lugar, no primeiro dia do nosso nascimento surgiu aí, onde agora está, para honra e glória do nosso nome. A sua divina disposição é assim: se entram três homens, fica cheia; se entram dez ou vinte, aumenta e cheia fica [se entram cem ou mil, volta a crescer e continua cheia; e] se entram dez ou vinte mil, ou até cem mil, continua a aumentar ou a ficar cheia. [De três e acima de três até ao infinito aumenta sempre e fica sempre cheia]. E assim como cresce com a entrada dos homens até ao infinito e está sempre cheia. Mas de três para baixo não aumenta nem diminui.

Isso, na verdade têm a significância da Santa e Indivisa Trindade porque, assim como a capela de três para baixo não sofre aumento nem diminuição, assim também a Santa Trindade não sofre aumento nem diminuição, não aceita mais nem menos Pessoas do que as três. Filho e Espírito Santo, que são três Pessoas em um só Deus verdadeiro e uma essência divina.

Acerca da nossa glória e poder não podemos, ao presente, dizer-te mais. Mas, quando vieres até nós, verás que na verdade somos o Senhor dos Senhores de toda a terra. Por agora, saibas apenas este pouco, a saber que:

A nossa terra [se] estende para um lado até à extensão de quatro meses em largura, e para o outro lado ninguém pode saber até onde se dilata o nosso domínio. Se podes contar as estrelas do céu e as areias do mar, então poderás contar os nossos domínios e o nosso poder.

Feita em Bibric no dia quinze das Calendas de abril do ano 51 do nosso nascimento.

Nota:

* Excertos.