O Pecado do Rei David

jun/24

TRADIÇÃO JUDAICA

O Pecado do Rei David: visão cabalística*

Rav Hamnuna Sava

A Tradição mística de Israel atribui ao rei David, e também a seu filho Salomão, um papel histórico muito diferente do que se pode supor das histórias bíblicas. É verdade que David foi um grande guerreiro e que derramou sangue nas terras de Canaã, mas suas atitudes enquanto chefe de estado devem ser compreendidas, não somente em conformidade com a cultura da época, mas, principalmente, tendo em vista a grande missão que lhe foi dada pelo profeta Samuel, no momento em que foi ungido rei, numa terra que ainda hoje está em guerra.

O jovem David foi perseguido injustamente pelo rei Saul, ao ponto que, em certa altura de sua vida, não tinha sequer um teto para morar. Depois de tremendas dificuldades, finalmente assumiu o reinado, quando então enfrentou fortes batalhas externas, enquanto lidava com sorrateiras e nefastas tramas internas, que culminaram em guerra civil e tentativa de tomada de poder por um de seus próprios filhos.

Então, a vida deste ilustre rei não foi fácil. Mas em meio a tudo isso, nos legou belíssimas canções de louvor ao Deus de seu coração e um exemplo de fé inabalável no Altíssimo, a Quem se dirigia em seus mais intensos momentos de vida: seja nas dores e arrependimentos, com lágrimas na voz; ou nas alegrias e júbilos, com sua graciosa harpa.

Muitos não compreendem este enigmático rei, tão cheio de contradições, mas porque não sabem que além de pastor na juventude, harpista, poeta, guerreiro e estadista, foi também um grande cabalista, tendo recebido esta Sagrada Ciência, muito provavelmente, das mãos do próprio profeta Samuel, em sua escola de profetas. Seu conhecimento oculto ficou gravado na arquitetura de Israel e em seus Salmos, eivados de profecias e de segredos e mistérios da Cabalá, provando não apenas sua erudição, mas sua enorme aptidão para a elevação espiritual.

Sem dúvidas, um dos acontecimentos que mais põe em cheque a ética e moral de David, foi seu envolvimento com Bat-Shéva. Como um nobre rei, capaz de atitudes tão honrosas, elevados louvores e certeiras profecias, foi capaz de uma atitude tão vil? Tomar a mulher de um de seus guerreiros, e ainda por cima de uma maneira tão perfidiosa, tramando a morte de seu soldado nos campos de batalha para encobrir seu erro.

Aqui, não pretendemos eximir David de culpa, mas apenas expor certos fatos que estão além da Bíblia, mas que são de conhecimento dos sábios cabalistas há muitos séculos. Segundo uma antiga tradição mística de Israel, consagrada no Zohar, o Livro do Esplendor, o Rav Hamnuna Sava disse o seguinte...

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'Não permitas que tua boca induza tua carne a pecar' (Ec 5:5). Não se deve deixar que a boca alcance fantasias malignas, fazendo com que aquela carne sagrada, aonde foi selada a Sagrada Aliança1, seja causa de pecado. Se deixa, será arrastado para o inferno. Aquele encarregado do inferno é denominado dumá, que é escoltado por muitas miríades de anjos de destruição. Ele permanece na porta do inferno, mas a ele não é permitido se aproximar daqueles que guardam a Sagrada Aliança neste mundo.

Rei David - quando aquele incidente ocorreu com ele - estava amedrontado. Naquele momento, dumá subiu à presença do Santíssimo abençoado e falou para Ele: 'Mestre do Universo, está escrito na Torá: 'um homem que comete adultério com a esposa de outro homem...' (Lev 20:10), 'com a esposa de seu vizinho' (Lev 18:20). David, que arruinou a Aliança com luxúria, o que deverá ser feito com ele?'

O Santíssimo abençoado disse a ele: "David é inocente, e a Sagrada Aliança continua firme, pois ante Mim é revelado que Bat-Shéva foi a ele destinada desde o dia em que o mundo foi criado".

Ele replicou: "Mesmo se é revelado ante o Senhor, mas ante ele não o foi".

O Santíssimo disse: "E mais, o que aconteceu, aconteceu com permissão, pois, de todos aqueles que entravam em batalha, nenhum entraria antes de estar legalmente divorciado de sua esposa".

Dumá respondeu: "Se é assim, ele deveria ter esperado três meses, e ele não o fez".

O Santíssimo afirmou: "Para quais casos esta regra foi estabelecida? Quando suspeitamos de uma gravidez. Mas é revelado ante Mim que Uriah nunca se aproximou dela, pois veja, Meu nome está selado dentro dele como evidência, pois é pronunciado tanto Uriy-Yah como Uriy-Yahu2. Meu nome está selado nele, provando que ele nunca coabitou com ela3".

Dumá falou: "Mestre do Universo, como eu já falei, mesmo se ante o Senhor é revelado que Uriah não se deitou com ela, isto foi revelado para David? Ele deveria ter esperado três meses por ela. Além disso, se David sabia que Uriah nunca se deitou com ela, por que David a enviou para ele e o ordenou que tivesse relações com ela, como está escrito: 'desce à tua casa e lava os teus pés' (2 Sm 11:8)?"

O Santíssimo disse: "Ele certamente não sabia. Mas ele esperou mais que três meses - na verdade, quatro, pois assim nós aprendemos: no vigésimo quinto dia de Nissan4, David publicou a declaração de guerra por todo Israel, e no sétimo dia de Sivan se juntaram sob o comando de Joab; depois se estabeleceram e destruíram a terra dos filhos de Amon. Eles ali ficaram nos meses de Sivan, Tammuz, Av, and Elul, e no vigésimo quarto dia de Elul aconteceu o que aconteceu com Bat-Shéva. No Yom Kippur o Santíssimo abençoado o perdoou daquele pecado (...): 'YHVH removeu seu pecado; você não vai morrer' (2 Sm 12:13). O que significa 'você não vai morrer'? Você não vai morrer na mão de dumá”.

Dumá replicou: “Mestre do Universo, eu ainda tenho uma coisa contra ele, pois David abriu a boca pra dizer: 'Assim como vive YHVH, o homem que fez isso merece morrer' (2 Sm 12:5). Ele condenou a si mesmo. Eu exijo ele!"

O Santíssimo disse: “Você não está autorizado! Ele confessou para Mim, dizendo, 'Eu pequei contra YHVH' (2 Sm 12:13), mesmo não tendo pecado! Mas quanto ao seu pecado contra Uriah, Eu o sentenciei à punição, a qual ele recebeu5”.

Imediatamente dumá retornou em desespero para o seu lugar. Sobre isso, David disse: 'Não tivesse YHVH sido meu socorro, minha alma estaria em breve habitando com dumá' (Sl 94:17).

Rav Hamnuna Sava

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Comentário:

Assim, vemos que Uriah, por algum dever ou senso de responsabilidade, por motivo de orfandade ou outro que desconhecemos, casou-se com Bat-Shéva, mas não a tinha como mulher, e sim como uma filha. Ao ir à guerra, deixou-lhe carta de divórcio, conforme leis da época. Passados os três meses da lei, David esteve com ela. Quando soube da gravidez, pediu notícias de Uriah, quando ficou sabendo que permanecia vivo. A partir de então, sua atitude é deplorável, pois procurou a pior solução possível, entregando-o à morte em combate. Deste ato, arrependeu-se profundamente, como eternizado no Salmo 51, e recebeu de Deus o perdão (Sl 94).

Mas - e aqui está o principal intento deste artigo - justiça seja feita à Bat-Shéva: a tradição oral cabalística confirma que nunca foi promíscua, como muitas vezes é retratada. Considerada uma filha por Uriah, vivia sob sua responsabilidade; era como uma pai para ela (2Sm 12:3). Segundo os antigos místicos de Israel, eles nunca tiveram relações, e já estava há mais de três meses sem notícias do seu tutor, sem garantia de vida. Enamorou-se do rei, e com ele coabitou, legitimamente, segundo as leis judaicas.

E assim não poderia seria diferente, pois a mãe do futuro Grande Rei Salomão não seria uma mulher comum, muito menos uma mulher vulgar. Mas, ao contrário, recebeu de Deus a graça de trazer ao mundo um Ser Iluminado, um Verdadeiro Mestre, prometido e anunciado por Deus à David, através do profeta Natan, de quem recebeu o nome Yedidiah, "Amado do Senhor" (2Sm 7:12 e 12:24).

Notas:

* Texto extraído do Zohar [1:8b], traduzido e adaptado pelo editor.

** Com introdução e comentários do editor.

1 Refere-se à circuncisão, pacto entre Deus e Abraão. Note que, na tradição mística de Israel, a verdadeira circuncisão não é feita no órgão sexual masculino, mas na boca, confirmando os posteriores ensinamentos de Jesus (Mt 15: 11-18).

2 Yah e Yahu são nomes de Deus em hebraico, e ambos podem estar presentes na pronúncia da palavra Uriah. Na Cabalá, as palavras podem ter um significado místico intrínseco.

3 Note que o profeta Natan descreveu o relacionamento entre Uriah e Bat-Shéva como de pai e filha (2 Sm 12: 3).

4 Nisan é o primeiro mês da primavera, mês em que David entrou em guerra (2 Sm 11:1).

5 Pelo pecado de ter mandado Uriah à frente de batalha, David teve sua dinastia arruinada por guerras, teve esposas violentadas e perdeu seu primeiro filho com Bat-Shéva.

6 Aqui o Rav Hamnuna Sava revela o significado místico desta passagem: na árvore sefirótica, David simboliza a Presença Divina em Malchut, ou seja, a Centelha Divina que habita o ser humano neste plano material, fronteira com o “plano infernal”.