Melki-Tsedeq, o Rei do Mundo

jun/24

MATÉRIA DE CAPA

Melki-Tsedeq, o Rei do Mundo*

René Guênon

O título de Rei do Mundo, na sua acepção mais elevada, completa e exata, se aplica ao Legislador Primordial e Universal, cujo nome é tradicionalmente reverenciado, sob diversas formas, por grande número de povos antigos. Tais nomes não designam, de modo algum, personagens históricos mais ou menos lendários. Trata-se, na realidade, de um Princípio, o arquétipo do homem, uma Inteligência Cósmica que reflete a Luz Espiritual pura e emana a Lei apropriada às condições de nosso mundo ou de nosso ciclo de existência.

No entanto, o que importa essencialmente é que tal Princípio pode ser manifestado por um centro espiritual, estabelecido no mundo terreno por uma organização encarregada de conservar integralmente o depósito da tradição sagrada, de origem não humana, pela qual a Sabedoria Primordial se comunica através das eras àqueles que são capazes de a receber.

O chefe de semelhante organização, pelo grau de conhecimento alcançado, identifica-se realmente com este Princípio, do qual é como que a expressão humana e diante do qual a sua individualidade desaparece.

Saint-Yves apresenta-o como Soberano Pontífice, pois que, em verdade, trata-se de um duplo poder, ao mesmo tempo sacerdotal e real. O caráter pontifical, de acordo com o verdadeiro sentido desta palavra, pertence de direito e de fato ao chefe da hierarquia iniciática.

Pelo que acabamos de dizer, pode-se compreender que o Rei do Mundo deve ter uma função essencialmente ordenadora e reguladora (este último termo provém da raiz rex, regere), função que pode resumir-se na palavra equilíbrio (ou harmonia).

Entendemos que isto é o reflexo, no mundo manifestado, da imutabilidade do Princípio Supremo. Podemos também compreender, através das mesmas considerações, por que razão o Rei do Mundo tem por atributos fundamentais a Justiça e a Paz, que nada mais são do que as formas pelas quais o equilíbrio e a harmonia se revestem no mundo do homem.

"O Rei do Mundo – diz diz um Lama a Ossendowski – está em conformidade com os pensamentos de todos aqueles que dirigem o destino da humanidade (…). Ele conhece as suas intenções e ideias. Se elas agradam a Deus, o Rei do Mundo lhes favorecerá com seu auxilio invisível; se desagradam a Deus, o Rei provocará o seu desaire. Tal poder foi dado a Aghartti pela ciência misteriosa de Om, palavra sagrada com a qual começamos todas as nossas preces".

Nas tradições orientais, é dito que o soma, em uma certa época, tornou-se desconhecido, de maneira que foi preciso substituí-lo por uma outra bebida, para representá-lo nos ritos sacrificiais. Esse papel foi desempenhado principalmente pelo vinho, que é frequentemente considerado símbolo da verdadeira tradição iniciática. Tal é, notadamente, o caso do sacrifício Eucarístico de Melquisedeque.

O nome de Melquisedeque, ou mais exatamente Melki-Tsedeq, não é outra coisa senão o nome sob o qual a própria função do Rei do Mundo se encontra expressamente designada na tradição judaico-cristã, fato este que explica uma das passagens mais enigmáticas da Bíblia hebraica.

Eis inicialmente o próprio texto da passagem bíblica no qual diz: “Melki-Tsedeq, rei de Salém, fez trazer pão e vinho; e ele era sacerdote do Deus Altíssimo (El Élion). E ele abençoou Abrão dizendo: ‘Bendito seja Abrão pelo Deus, possuidor dos Céus e da terra; e bendito seja o Deus Altíssimo que entregou os teus inimigos nas tuas mãos. E Abram lhe deu o dízimo de tudo que tinha tomado" [Gn 14:18-20].

Melki-Tsedeq é, pois, rei e sacerdote. O seu nome significa Rei de Justiça, e ele é ao mesmo tempo rei de Salém, que quer dizer Rei da Paz. Encontramos aqui, antes de tudo, a Justiça e a Paz, os dois atributos fundamentais do Rei do Mundo. É preciso notar que a palavra Salém, contrariamente à opinião comum, nunca designou em realidade uma cidade, mas se tomada pelo nome simbólico da residência de Melki-Tsedeq, pode ela ser considerada uma equivalente do termo Agartha. Em todo caso, é um erro ver ali o nome primitivo de Jerusalém, porque esse nome era Jêbus; ao contrário, se o nome de Jerusalém foi dado a esta cidade quando um centro espiritual foi ali estabelecido pelos hebreus, foi para indicar que consideravam-na uma imagem visível da verdadeira Salém. E é de se notar que o Templo foi edificado por Salomão, cujo nome Shlomoh, também derivado de Salém, significa o Pacífico.

Eis agora em quais termos S. Paulo comenta o que foi dito de Melki-Tsedeq: "Este Melki-Tsedeq, rei de Salém, sacerdote do Deus Altíssimo, que saiu ao encontro de Abraão quando ele regressava da derrota dos reis, que o abençoou e a quem Abraão deu o dízimo de todos os despojos; que é, em primeiro lugar, segundo a significação do seu nome, rei da Justiça e depois, também, rei de Salém, isto é, rei da Paz; que não tem pai nem mãe nem genealogia, que não tem começo nem fim de vida, mas está feito assim à semelhança do Filho de Deus e permanece sacerdote para sempre" [Hb 7:1-3].

Ora, Melki-Tsedeq é representado como superior a Abraão, visto que o abençoa e, “sem dúvida, é o inferior que é abençoado pelo Superior”; por outro lado, Abraão reconhece essa superioridade, visto que lhe dá o dízimo, o que é sinal de sua dependência. Há aí uma verdadeira investidura, quase no sentido feudal desta palavra, mas com a diferença de que se trata de uma investidura espiritual; e podemos acrescentar que se encontra aí o ponto de junção da tradição hebraica com a grande tradição primordial. A benção da qual se fala, é propriamente a comunicação de uma influencia espiritual, da qual Abraão vai participar daí em diante, e pode-se observar que a fórmula empregada põe Abraão em relação direta com o Deus Altíssimo, a quem o próprio Abrão invoca em seguida, identificando-o com Iahveh.

A tradição judaico-cristã distingue dois sacerdócios, um "segundo a ordem de Aarão", e outro "segundo a ordem de Melki-Tsedeq"; e este é superior àquele como o próprio Melki-Tsedeq é superior a Aarão, do qual procede a tribo de Levi e, por conseguinte, a família de Aarão. Esta superioridade é claramente afirmada por São Paulo que diz: "O próprio Levi, que recebe os dízimos, pagou-os por assim dizer, por intermédio de Abraão” [Hb 7:9]. Não devemos nos estender demais aqui, sobre a significação destes dois sacerdócios, mas citaremos ainda estas palavras de São Paulo: "Aqui (no sacerdócio levítico) são homens mortais que recebem os dízimos; ali, porém, é um homem de quem se testifica que vive” [Hb 7:8]. Este Homem Vivo, que é Melki-Tsedeq, é a Inteligência Cósmica que se perpetua por toda a duração de seu ciclo ou do mundo que ele rege especialmente. É por isso que ele é sem genealogia, visto que sua origem é não humana, por que é ele mesmo o protótipo do homem. E ele é verdadeiramente "feito à semelhança do Filho de Deus", pois que, pela Lei que ele formula, é para este mundo a expressão e a própria imagem do Verbo Divino.

Se tomarmos agora o nome de Melki-Tsedeq em seu sentido mais estrito, os atributos próprios do Rei de Justiça são a balança e a espada. Estes são, hieroglificamente, os dois caracteres que formam a raiz hebraica e árabe Haq, que significa simultaneamente Justiça e Verdade, ou, no sentido espiritual, a Força da Verdade. Existe, também, a forma suavizada Hak, que designa propriamente a Sabedoria (em hebraico Hokmah), de sorte que ela convém mais especialmente à autoridade sacerdotal, como a outra ao poder real.

A Cabala hebraica diz que Shekinah é representada no mundo exterior pela última das dez Sephiroth, que é chamada Malkuth, o Reino, designação digna de nota dentro do que expusemos. Mais significativa ainda é que, entre os sinônimos que algumas vezes são dados a Malkuth, encontra-se a palavra Tsedeq, o Justo. Esta comparação de Malkuth com Tsedeq – ou da Realeza (o governo do Mundo) com a Justiça – encontra-se precisamente no nome de Melki-Tsedeq. Trata-se aqui da justiça distributiva e equilibrante, na Coluna do Meio da árvore sefirótica. É preciso distingui-la da Justiça oposta à Misericórdia e identificada com o Rigor, na Coluna da Esquerda, porque são dois aspectos diferentes (em hebraico, há duas palavras para designá-las, Tsedaqah e Din, respectivamente). É o primeiro destes aspectos a Justiça no mais estrito e completo sentido, implicando essencialmente a ideia de equilíbrio ou harmonia, indissoluvelmente ligado à Paz.

Malkuth é “o reservatório onde se reúnem as águas que vêm do rio de cima, isto é, todas as emanações (graças ou influências espirituais) que ela emana em abundância” [Zohar]. Este “reservatório de águas celestes” é, naturalmente, idêntico ao centro espiritual do nosso mundo; de lá partem os quatro rios do Pardes (Jardim do Éden), dirigindo-se para os quatro pontos cardeais. Para os judeus, o centro espiritual se identifica com a colina Sião, à qual eles chamam de Coração do Mundo, o que é comum, aliás, a todas as Terras Santas.

* Extraído do livro "O Rei do Mundo".