Carta a Diogneto

dez/23

HISTÓRIA CRISTÃ

A Carta a Diogneto: Uma Joia da Literatura Cristã Primitiva

A Carta a Diogneto é um texto intrigante da literatura cristã, que oferece a visão de um dos primeiros adeptos desta nova doutrina, nos tempos da perseguição do Império Romano, respondendo a um pagão culto que deseja entendê-la melhor, impressionado com a maneira como eles renunciavam ao mundo, à morte e aos falsos deuses, além do amor que tinham uns pelos outros. Ele ansiava saber mais sobre o Deus em quem confiavam, seu culto e a razão pela qual esse novo povo surgiu tão tarde na história. Tudo isso é feito com um estilo aprimorado e elegante, demonstrando maestria nos elementos retóricos.

No entanto, esse documento permanece envolto em mistério. Sua autoria, data de composição, local de origem e destinatário são pontos de debate entre os estudiosos. A única cópia conhecida foi encontrada casualmente por Tomás de Arezzo em Constantinopla, em 1436. Embora tenha sido editada por Henricus Stephanus em 1592, a Biblioteca Municipal de Estrasburgo, onde estava guardada, foi destruída em um incêndio durante a Guerra Franco-Prussiana em 1870.

Uma teoria recente apresentada por Paul Andriessen sugere que a Carta a Diogneto pode ser a apologia que Quadrato apresentou ao imperador Adriano e que se pensava estar perdida. Esta teoria é baseada na semelhança de estilo entre a correspondência e um fragmento desta apologia preservado por Eusébio de Cesareia.

Se aceitarmos essa teoria, o destinatário destas linhas seria o próprio imperador Adriano, que era chamado de Diogneto devido ao seu caráter e estilo de vida, e teriam sido escritas por volta de 120 d.C. em Atenas. Elas fazem referências à Iniciação de seu destinatário, o que se encaixa na biografia conhecida de Adriano.

Transcrevemos, abaixo, algumas das mais belas passagens deste raro manuscrito, considerado um tesouro valioso da literatura cristã primitiva e que oferece insights únicos sobre a Boa Nova e seu contexto na Roma antiga.

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Excelentíssimo Diogneto,

Vejo que te interessas em aprender a religião dos cristãos e que, muito sábia e cuidadosamente te informaste sobre eles: Qual é esse Deus no qual confiam e como o veneram, para que todos eles desdenhem o mundo, desprezem a morte, e não considerem os deuses que os gregos reconhecem, nem observem a crença dos judeus; que tipo de amor é esse que eles têm uns para com os outros; e, finalmente, por que esta nova estirpe ou gênero de vida apareceu agora e não antes. Aprovo este teu desejo e peço a Deus, o qual preside tanto o nosso falar como o nosso ouvir, que me conceda dizer de tal modo que, ao escutar, te tornes melhor; e assim, ao escutares, não se arrependa aquele que falou.

[...]

Os cristãos, de fato, não se distinguem dos outros homens, nem por sua terra, nem por sua língua ou costumes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam língua estranha, nem têm algum modo especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por eles, graças ao talento e a especulação de homens curiosos, nem professam, como outros, algum ensinamento humano. Pelo contrário, vivendo em casas gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida admirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é pátria deles, e cada pátria é estrangeira. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Põe a mesa em comum, mas não o leito; estão na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm sua cidadania no céu; obedecem as leis estabelecidas, mas com sua vida ultrapassam as leis; amam a todos e são perseguidos por todos; são desconhecidos e, apesar disso, condenados; são mortos e, deste modo, lhes é dada a vida; são pobres e enriquecem a muitos; carecem de tudo e têm abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo, tornam-se glorificados; são amaldiçoados e, depois, proclamados justos; são injuriados, e bendizem; são maltratados, e honram; fazem o bem, e são punidos como malfeitores; são condenados, e se alegram como se recebessem a vida. Pelos judeus são combatidos como estrangeiros, pelos gregos são perseguidos, e aqueles que os odeiam não saberiam dizer o motivo do ódio.

Em poucas palavras, assim como a alma está no corpo, assim estão os cristãos no mundo. A alma está espalhada por todas as partes do corpo, e os cristãos estão em todas as partes do mundo. A alma habita no corpo, mas não procede do corpo; os cristãos habitam no mundo, mas não são do mundo. A alma invisível está contida num corpo visível; os cristãos são vistos no mundo, mas sua religião é invisível. A carne odeia e combate a alma, embora não tenha recebido nenhuma ofensa dela, porque esta a impede de gozar dos prazeres; embora não tenha recebido injustiça dos cristãos, o mundo os odeia, porque estes se opõem aos prazeres. A alma ama a carne e os membros que a odeiam; também os cristãos amam aqueles que os odeiam. A alma está contida no corpo, mas é ela que sustenta o corpo; também os cristãos estão no mundo como numa prisão, mas são eles que sustentam o mundo. A alma imortal habita em uma tenda mortal; também os cristãos habitam como estrangeiros em moradas que se corrompem, esperando a incorruptibilidade nos céus. Maltratada em comidas e bebidas, a alma torna-se melhor; também os cristãos, maltratados, a cada dia mais se multiplicam. Tal é o posto que Deus lhes determinou, e não lhes é lícito dele desertar.

De fato, como já disse, não é uma invenção humana que lhes foi transmitida (...). Ao contrario, Aquele que é verdadeiramente Senhor e Criador de tudo, o Deus invisível, ele próprio fez descer do céu, para o meio dos homens, a Verdade, a palavra santa e incompreensível, e a colocou em seus corações. Fez isso, não mandando para os homens, como alguém poderia imaginar, algum dos seus servos, ou um anjo, ou algum príncipe daqueles que governam as coisas terrestres, ou algum dos que são encarregados das administrações dos céus, mas o próprio Artífice e Criador do universo; Aquele por meio do qual Ele criou os céus e através do qual encerrou o mar em seus limites; Aquele cujo mistério todos os elementos guardam fielmente; Aquele de cuja mão o sol recebeu as medidas que deve observar em seu curso cotidiano; Aquele a quem a lua obedece, quando lhe manda luzir durante a noite; Aquele a quem obedecem as estrelas que formam o séquito da lua em seu percurso; Aquele que, finalmente, por meio do qual tudo foi ordenado, delimitado e disposto: os céus e as coisas que existem nos céus, a terra e as coisas que existem na terra, o mar e as coisas que existem no mar, o fogo, o ar, o abismo, aquilo que está no alto, o que está no profundo e o que está no meio. Foi Esse que Deus enviou. Talvez, como alguém poderia pensar, será que O enviou para que existisse uma tirania ou para infundir-nos medo e prostração? De modo algum. Ao contrário, enviou-O com clemência e mansidão, como um rei que envia seu filho. Deus O enviou, e O enviou como Homem para os homens; enviou-O para nos salvar, para persuadir, e não para violentar, pois em Deus não há violência. Enviou-O para chamar, e não para castigar; enviou-O, finalmente, para amar, e não para julgar. Ele O enviará para julgar, e quem poderá suportar Sua presença? Não vês como os cristãos são jogados às feras, para que reneguem o Senhor, e não se deixam vencer? Não vês como quanto mais são castigados com a morte, tanto mais outros se multiplicam? Isso não parece obra humana. Isso pertence ao Poder de Deus e prova a Sua presença.

[...]

Não falo de coisas estranhas, nem busco coisas absurdas. Discípulo dos apóstolos, torno-me agora mestre das nações e transmito o que me foi entregue para aqueles que se tornaram discípulos dignos da verdade. De fato quem foi retamente instruído e gerado pelo Verbo amável, não procura aprender com clareza o que o mesmo Verbo claramente mostrou aos seus discípulos? O Verbo apareceu para eles, manifestando-se e falando livremente. Os incrédulos não o compreenderam, mas ele guiou os discípulos que julgou fiéis, e estes conheceram os mistérios do Pai. Deus enviou o Verbo como graça, para que se manifestasse ao mundo. Desprezado pelo povo, foi anunciado pelos apóstolos a acreditado pelos pagãos. Desde o princípio, apareceu como novo e era antigo, a agora sempre se torna novo nos corações dos fiéis. Ele É desde sempre, e hoje é reconhecido como Filho (...).

Atendendo e ouvindo com cuidado, conhecereis que coisas Deus prepara para os que O amam com lealdade. Transformam-se em paraíso de delícias, produzindo em si mesmos uma arvora fértil e frondosa, ornados com toda a variedade de frutos. Com efeito, neste lugar foi plantada a Árvore da Ciência e a Árvore da Vida; não é a Árvore da Ciência que mata, e sim a desobediência. Não é sem sentido que está escrito: No princípio Deus plantou a Árvore da Ciência da Vida no meio do Paraíso, indicando assim a vida por meio da ciência. Contudo, por não tê-la usado de maneira pura, os primeiros homens ficaram nus por causa da sedução da serpente. De fato, não há Vida sem Ciência, nem Ciência segura sem Verdadeira Vida, e por isso as duas Árvores foram plantadas uma perto da outra. Compreendendo essa Força e lastimando a Ciência que se exercita sobre a Vida sem a norma da Verdade, o Apóstolo diz: “A ciência incha; o amor, porém, edifica”. De fato, quem pensa que sabe alguma coisa sem a Verdadeira Ciência, testemunhada pela Vida, não sabe nada: é enganado pela serpente, não tendo amado a Vida. Aquele, porém, que sabe com temor e procura a Vida, planta na esperança, esperando o fruto. Que a Ciência seja Coração para ti; a Vida seja o Verbo verdadeiramente compreendido. Levando a Árvore dele e produzindo fruto, sempre colherás o que é agradável diante de Deus, o que a serpente não toca, nem se mistura em engano; nem Eva é corrompida, mas reconhecida como virgem. A Salvação é mostrada, os apóstolos são compreendidos, a Páscoa do Senhor se adianta, os círios se reúnem, harmoniza-se com o mundo e, instruindo os santos, o Verbo se alegra, pelo qual o Pai é glorificado. A Ele, a Glória pelos séculos!

Amém!